Uma ex-professora da Escola Construir, onde um bebê de 2 anos e 9 meses morreu afogado em uma piscina na manhã desta quinta-feira (15), no bairro do Cabula VI, em Salvador, afirmou que o óbito de Victor Figueredo de Andrade Santos foi uma “tragédia anunciada”.

Sem querer ser identificada, a pró contou que trabalhou durante oito meses no local – entre maio e dezembro de 2017 – e que diversas irregularidades ocorriam no dia a dia da unidade de ensino. Uma delas era justamente o portão próximo à piscina, pelo qual Victor passou para chegar à água – segundo ela, era comum o acesso ficar aberto. De acordo com ela, as irregularidades já começaram com a troca de cargo. Ela diz que inicialmente foi chamada para ser auxiliar de professora, mas que atuava como professora regente.

“O portão que fica perto da piscina sempre ficava aberto. Eles colocavam o cadeado só para dizer que estava fechado, mas vivia aberto”, reforçou. A professora contou que uma das motivações para pedir o isolamento da área era a preocupação com a proliferação de mosquitos.“A gente também pedia para fechar a piscina por conta da dengue. Também havia um acúmulo de funções por parte dos funcionários na escola. Tinha gente que cuidava da cozinha, do financeiro e ainda atendia o portão”, adicionou a ex-professora. Além disso, diversas crianças tinham acesso à área da piscina, de acordo com a fonte. “Geralmente as mais velhas. Com os bebês isso nunca tinha acontecido”, comentou.

Mensagem de alerta

Um e-mail enviado pelos funcionários em agosto, aos gestores, que a reportagem teve acesso, já pedia alterações na piscina e na divisão de tarefas pelos funcionários. Dentre as queixas dos funcionários estava o somatório de funções. “O dia a dia da Escola Construir tem sido muito difícil para todos os funcionários. Isso se deve ao acúmulo de funções por parte de alguns funcionários, à falta de suporte para outros, entre outras coisas”, diz um trecho da mensagem. Uma preocupação com a piscina também é manifestada no e-mail. “Estamos todos aflitos com a questão da piscina. A preocupação é o ambiente propício ao desenvolvimento da dengue. (…) Seria importante providenciar uma lona pra cobrir a piscina se ela não for ser utilizada nos próximos tempos, isso já poderia reduzir riscos de algo acontecer”, continua o texto.

Victor era uma das 11 crianças que a ex-professora cuidava. Ela conta que eram oito da turma dela e mais três que ela tinha que absorver, porque não tinham atividades pedagógicas disponíveis no turno. “Ele (Victor) era mais independente. Sempre queria ficar fora da sala dos bebês e a gente levava ele para a sala dos maiores, que tinha televisão. Ele amava assistir televisão. Acabava que a gente cuidava dele de forma compartilhada”, comenta. “Ele era uma das crianças mais obedientes. A gente pedia e ele escutava. E ele era muito amado e tinha um olhar de doçura especial. Lamento muito o que ocorreu”, complementa a ex-pró de Victor.

Piscina

O descuido com a piscina aparentemente não vem de hoje. Jana Santana, 29, moradora do Cabula VI e mãe de Maria, 2, conta que pensou em matricular a filha na escola, mas que desistiu. “Eu fui lá no final do ano passado para ver se colocaria minha filha para estudar. Fiquei com medo da piscina. Perguntei se tinha proteção ou cuidados especiais por conta da piscina e eles não deram boas respostas”, lembra a mãe de Maria. “A piscina estava descoberta com crianças passando de um lado para o outro. Fiquei com medo e decidi não colocar ela lá”, conclui Jana.

Já Juliana Silva chegou a matricular sua filha na escola. “Há três anos minha filha estudou nessa mesma creche e o motivo de tirá-la de lá foi justamente a falta de proteção, porque não havia nada que impedisse que qualquer criança chegasse no local. No ano passado, estive lá novamente para matricular minha filha. Quando entrei, percebi que a situação piorou, depois de uma reforma, quando eles abriram uma porta na cozinha que dá acesso à piscina”, conta a mãe da ex-aluna. “Quando questionei à funcionária sobre a porta, ela respondeu que as crianças não passavam por ali e que há muita atenção. Não fiz a matrícula porque não senti segurança alguma”, completa Juliana.

Homicídio culposo

Os responsáveis pela morte de Victor, filho de Bruna Bispo e André Andrade, podem ser indiciados por homicídio culposo (quando não há a intenção de matar). De acordo com a delegada Lúcia Jansen, titular da 11ª Delegacia (Tancredo Neves), há a possibilidade de o inquérito identificar mais de um responsável. “Não há dúvidas para a Polícia de que houve negligência. Nós temos que concluir o inquérito, fechar o procedimento para mandar para a Justiça. Mas há a possibilidade de ter mais de um responsável. A lei estabelece o dever de cuidado. Houve negligência porque não atentaram à guarda dessa criança, que estava sob responsabilidade desses. No momento, estamos concluindo as investigações para identificar quem é o responsável”, explica a delegada.

Até agora, seis pessoas foram ouvidas, incluindo o diretor, a professora de Victor e mais quatro funcionários da escola. Os pais ainda não prestaram depoimento. Eles enterrarão o corpo do bebê neste sábado (17) em Morro do Chapéu, Centro-Norte do estado. A escola já foi periciada pela polícia técnica e por engenheiros. A delegada aguarda o resultado das análises. “O que vai nos ajudar é o laudo da engenharia, que vai nos dizer se a escola está adaptada às regras para o funcionamento da creche. A questão agora é a responsabilidade”, destaca a delegada. A perícia irá ajudar no entendimento de como a criança teve acesso à piscina. “Vamos ver se a criança escorregou, porque o local está em obras, tem resto de material de construção. Lá existe uma cerca que não é próxima à piscina e existia uma porta que dá acesso à piscina. Por descuido, ela ficou aberta”, relata.

Escola fechada

As aulas da Escola Constuir, no Cabula VI, só poderão ser retomadas após a conclusão do inquérito policial. Uma nota de pesar foi publicada pela unidade em sua página do Facebook. No comunicado, a creche lamentou a morte da criança e afirmou que se disponibiliza para dar “todo o suporte necessário neste momento”. Tal posicionamento foi confirmado pela advogada Vanessa Souza, que esteve nesta sexta-feira (16) na 11ª Delegacia para acompanhar o depoimento da professora e de duas funcionárias. “Ainda não há nada conclusivo. O que eu posso adiantar é que a creche se põe à disposição para a investigação”, adiantou a advogada. Vanessa destacou a presença da cerca de segurança em volta da piscina e afirmou que esse é um dos objetos de investigação: saber como a criança teve acesso à piscina e o motivo dela estar sozinha. A advogada ainda afirmou que a escola conta com um funcionário responsável pela parte externa, mas que eles não sabem informar se estavam presentes no momento em que Victor caiu na piscina. A Escola Constuir conta com seis a oito funcionários por dia para tomar conta de 25 crianças. A advogada ainda afirmou que Victor ainda estava com vida quando foi socorrido na piscina. “Foram dados os primeiros socorros e ele veio a óbito na UPA”, citou. // CORREIO